Terras sem dono: aqui não há dragões, mas
também não há proprietários
Relembramos aqui o teor do artigo de Rita Tavares publicado no Observador já lá vão quase 5 anos (24-jun-2017)
Há uns anos, em
Viana do Castelo, um grande fogo em Santa Luzia fez o autarca local avançar com
uma medida: indemnizar quem tivesse visto os seus terrenos dizimados pelo fogo.
Resultado? Várias pessoas atualizaram registos para poderem ser indemnizadas.
Foi uma forma de contornar — pelo menos naquela região — um dos problemas
centrais na questão do território em Portugal: a falta de registo das
propriedades rústicas (as que são fora dos aglomerados urbanos e não
identificados como terrenos para construir). Esta é uma questão central para os
problemas do território, mas também para a prevenção de incêndios, já que sem
donos identificados, as autoridades não têm a quem exigir a limpeza de matas e
florestas. O cadastro é um dos eixos da reforma florestal que o
Governo está a levar a cabo, mas está longe de ser a primeira vez que um
Executivo tenta controlar o que os especialistas em território consideram uma
verdadeira chaga.
Terra
incognita era o termo latim usado para a terra
desconhecida ou por explorar, nos mapas medievais aparecia um dragão nos locais
não explorados ou considerados perigosos: “Hic sunt dracones“
(“Aqui há dragões”). Agora, mesmo estando todo o território cartografado,
muitas parcelas têm donos desconhecidos, o que não as torna menos perigosas.
Quem mais dados tem
sobre os proprietários das terras são mesmo os autarcas, mais do que a
administração central que, nesta matéria, está mais às escuras. Numa entrevista
ao Observador, o investigador José Miguel Cardoso Pereira, conta a
história de um autarca que “quando não se sabe de quem é uma terra, ele vai lá,
põe uma placa a dizer ‘vende-se’ e coloca o seu número de telefone. E diz que
dois ou três dias, aparece o proprietário furioso a perguntar: ‘Seu desgraçado,
quem é você que está a tentar vender a minha terra?'”. Mais uma forma de
contornar a questão.
Qual
a dimensão do problema?
É complicado
responder. Não existem dados atualizados, precisamente porque não há cadastro.
Entre ministérios do Ambiente e da Agricultura e os vários organismos e
especialistas contactados pelo Observador, a resposta foi sempre esta: “O problema
é que não existe um cadastro. O problema é precisamente esse”. “Os registos
são ultradesactualizados”. Quando apresentou a reforma florestal — que vai
estar neste momento em discussão no Parlamento — o ministro da Agricultura, Capoulas
Santos, disse que estimava existirem mais de um milhão de prédios
rústicos em Portugal sem dono conhecido, embora logo a seguir afirmasse que
“ninguém neste momento pode dizer que este número está certo ou errado”.
O estudo “O
cadastro e a propriedade rústica” de Rodrigo Sarmento de Beires,
engenheiro e especialista em desenvolvimento florestal, publicado pela Fundação
Francisco Manuel dos Santos em 2013, estima que as terras sem dono ou sem dono
conhecido em Portugal signifiquem 10% do território, ou seja, “algo entre os 500
mil e um milhão de hectares de terras passíveis de serem mobilizadas e
tornadas disponíveis, muitas delas para fins essencialmente silvopastoris”.
E isto tem não só
implicações ao nível da limpeza das propriedades e da prevenção de
incêndios, como o debate que o devastador fogo de Pedrógão Grande veio avivar:
tem também implicações ao nível da dinamização da atividade económica e
da receita fiscal. Sem donos identificados, o Fisco não tem como ser
eficaz na cobrança do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), por exemplo. O
estudo de Rodrigo Sarmento de Beires calcula que a “componente rústica do IMI”
possa render “apenas 8 milhões de euros, num montante global de 1.065
milhões de euros de IMI coletados sobre prédios urbanos, ou seja, não chega a
1% do IMI todo”, refere.
Segundo dados (mais atuais à data) de
2016, relativos à cobrança de 2015, estavam registados nas Finanças cerca de
11,6 milhões de prédios rústicos que tinham um valor patrimonial para efeitos
de imposto de cerca de 1,3 mil milhões de euros. Destes imóveis, três milhões
estavam isentos e cerca de 8,5 milhões pagaram IMI, mas a receita foi apenas de
7,5 milhões de euros, continua a ser a mesma gota de água num valor
global arrecadado de 1.500 milhões em 2016.
Os dados de 2015,
relativos a 2014, acrescentam um outro dado: para efeitos fiscais, estavam
registados quase três milhões de contribuintes com propriedades rurais,
independentemente do número de imóveis que estavam em seu nome. O Governo está
neste momento a preparar uma
reavaliação do valor tributário da propriedade rústica.
Já que no diz
respeito às características, a maior parte destas terras de ninguém são
florestas, não fosse essa a ocupação maioritária do solo nacional: cerca de 40%
de Portugal, “o que equivale a quase três milhões e 500 mil hectares. A
floresta é a classe com maior expressão territorial e ocupa mais um milhão de
hectares do que a Agricultura”, de acordo com a Carta de Uso e Ocupação do Solo
da Direção Geral do Território. Pinheiros-bravos e Eucaliptos dominam, mas essa
é outra questão do debate dos últimos dias.
Curioso é que o
Estado aponta o dedo aos privados em matéria de cadastro, mas o estudo de
Sarmento Beires mostra que a questão do cadastro “não trará grandes novidades”
para “boa parte dos proprietários”. E isto porque esses “sabem, quase sem
exceção e com bastante exatidão, quais são os seus prédios e a sua
delimitação (salvo alguns casos mais recônditos)”. O verdadeiro problema, na
ótica do estudo já citado, é haver quem não saiba “onde estão e quais
são os limites da maior parte das terras que lhe pertencem” ou quais devem ser
geridas pelo Estado.
O
que já foi feito ou está na calha para resolver a questão
O desconhecimento
de proprietários traz problemas para a gestão das florestas, mas o Estado também
é sensível ao fator fiscal e económico. Há mais imposto que podia ser
arrecadado, quer sobre o património, quer através de receita fiscal vinda da
atividade económica dinamizada, por particulares ou empresas, naquelas áreas
deixadas ao abandono e sem registo. Foi muito por causa disto que o anterior
Governo criou a Bolsa Nacional de Terras que visava “facilitar o acesso
à terra através da disponibilização de terras, designadamente quando as mesmas
não sejam utilizadas”.
O objetivo era que
as terras sem uso e sem dono pudesse ser reintegradas no mercado florestal. Os
proprietários têm de registar a propriedade, se quiserem integrá-la na Bolsa
que depois negoceia o terreno: vende, arrenda ou permuta. Quem o fizer,
tem descontos na atualização da caderneta predial, com os custos dos registos a
terem reduções na ordem dos 75%, explica ao Observador o ex-coordenador da
Bolsa, Nuno Russo.
De acordo com os
dados mais atuais da Bolsa Nacional, até ao final de maio deste ano foram
disponibilizados quase 17 mil hectares de área, com uma oferta total de
685 prédio ou parcelas para arrendamento e venda. No período de funcionamento
da Bolsa, houve apenas dois concursos com terrenos do Estado, mas geraram
receitas de 2 milhões de euros, conta ainda o ex-coordenador.
A ideia do atual
Governo é substancialmente diferente, começando logo por forçar o registo.
Em vez de esperar que os proprietários não registados avancem por iniciativa
própria, o Governo dá dois anos para que os proprietários regularizem a
sua situação. As terras que depois disso permanecerem sem dono, integram
o Banco Nacional de Terras.
A Bolsa não deixará
de existir e passa a ter apenas propriedades de privados, que as coloquem lá de
forma voluntárias, do sector empresarial do Estado e dos municípios. Tudo o
resto vai para o Banco: terrenos do Estado e terras não reclamadas. Com
isto, o Governo diz ter essencialmente dois objetivos, na proposta que
apresentou ao Parlamento e que irá a votos a 19 de julho:
1. Facilitar o acesso à terra através da disponibilização de prédios
exclusivamente ou predominantemente rústicos, quando estes tenham aptidão
agrícola, silvopastoril ou florestal. Tem como fim promover a viabilidade
económica da terra.
2. E quanto às propriedades exclusivamente ou predominantemente rústicas
com utilização florestal, facilita o acesso à terra para permitir uma gestão
florestal profissional e sustentável.
O atual executivo
avança agora com uma proposta para a criação de um sistema de informação
cadastral simplificada, não só para identificar as terras, como também “a titularidade
dos prédios rústicos e mistos”, determina a proposta de lei que está no
Parlamento a aguardar aprovação. O sistema irá estar em vigor durante 30
meses vai incluir um regime de isenção de custos para quem decidir
registar, durante este período, as propriedades que tem na sua posse com
registo desatualizado.
Os prédios que não
forem identificados neste período passam para o Banco de Terras, mas o Estado
não pode ceder ou vender de forma definitiva os terrenos que vier e a integrar
na sequência deste registo. Isto por um período de 15 anos, que é o
espaço de tempo em que os proprietários podem reclamar a posse dessas
terras. No Conselho de Ministros da passada quinta-feira, o primeiro-ministro
avisou que a reforma da floresta não é um processo “imediato”. Os prazos
definidos nesta proposta acabam por explicar o alerta de António Costa, também
repetido pelo ministro da Agricultura, Capoulas Santos.
A proposta não é única. Também o PSD e o CDS
avançam com um projeto para o problema do cadastro, através do Sistema Nacional
de Informação Cadastral. A medida é apresentada como essencial “na articulação
do cadastro predial com a matriz, com o registo predial e com os atos
notariais, processuais ou outros, relativos a prédios cadastrados”. No fundo,
trata-se de agregar informação até agora dispersa. O tema da gestão florestal
ganhou urgência na última semana, depois do incêndio trágico de Pedrógão
Grande, com o Governo a garantir que tinha trabalhos em marcha e o Parlamento a
acelerar a aprovação das partes da reforma que estão na Assembleia da
República. O Banco de Terras e o Regime de Cadastro são duas delas e aguardam
consenso dos partidos até 19 de julho.
relembramos
aqui que estávamos então a 24 jun 2017, quando Rita Tavares publicou no
Observador o artigo em apreço…
Depois
foi criado O BUPi…
e depois, com a Lei n.º 78/2017 de 17 de
agosto, que:
Cria um sistema de informação cadastral
simplificada e revoga a Lei n.º 152/2015, de 14 de setembro
A Assembleia da República decreta, nos termos
da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, o seguinte:
CAPÍTULO I
Disposições gerais
Artigo 1.º
Objeto
1 - A presente lei cria:
a) Um sistema de informação cadastral
simplificada, adotando medidas para a imediata identificação da estrutura
fundiária e da titularidade dos prédios rústicos e mistos;
b) O Balcão Único do Prédio (BUPi).
2 - Para efeitos da alínea a) do número anterior,
são criados:
a) O procedimento de representação gráfica
georreferenciada;
b) O procedimento especial de registo de
prédio rústico e misto omisso;
c) O procedimento de identificação, inscrição
e registo de prédio sem dono conhecido.
Artigo 2.º
Âmbito de aplicação
A presente lei aplica-se:
a) Para efeitos da alínea a) do n.º 1 do
artigo anterior, aos prédios rústicos e mistos;
b) Para efeitos da alínea b) do n.º 1 do
artigo anterior, aos prédios urbanos, rústicos e mistos.
Artigo 3.º
Número de identificação de prédio
1 - O prédio tem um identificador único,
designado por número de identificação de prédio (NIP).
2 - A articulação do NIP com o sistema de
identificação do prédio usado para efeitos cadastrais, registrais, matriciais e
agrícolas é definida por decreto regulamentar.
Fonte:
https://dre.pt/dre/detalhe/lei/78-2017-108010874
E
depois foi generalizado O BUPi…
Com a Lei n.º 65/2019, de 23 de agosto
Mantém em vigor e generaliza a aplicação do
sistema de informação cadastral simplificada
Fonte:
https://dre.pt/dre/detalhe/lei/65-2019-124171091
E até 8-01-2025 (p/ o concelho da Lousã) vigora o regime de gratuitidade para os proprietários que pretendam identificar e registar as suas propriedades
Fonte:https://bupi.gov.pt/
ΦΦΦ
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