A pedido de um dos nossos Associados, divulgamos aqui um Artigo de Opinião da autoria de
Henrique Pereira dos Santos,
Licenciado em Arquitetura Paisagista, com uma carreira profissional ligada ao ordenamento e gestão em conservação da natureza. Dirigente do Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade vários anos, durante dez anos trabalhou como consultor independente na área da gestão da biodiversidade.
Act of God”
Licenciado em
Arquitetura Paisagista, com uma carreira profissional ligada ao ordenamento e
gestão em conservação da natureza. Dirigente do Instituto da Conservação da
Natureza e da Biodiversidade vários anos, durante dez anos trabalhou como
consultor independente na área da gestão da biodiversidade.
Data: 15
Julho 2022
Não, os incêndios não são um “act of God” e os
responsáveis pelo padrão que eles assumem são muitos e variados, porque somos
todos e cada um de nós (incluindo no momento em que escolhemos quem nos
governa, evidentemente, mas também quando escolhemos o que comer, pelo menos
três vezes por dia).
O título deste artigo é uma expressão inglesa
que designa, inclusivamente nos textos legais, um desastre natural que está
para lá da capacidade de controlo humano e que, por isso, não pode resultar na
responsabilização de ninguém pelos seus efeitos.
Vale a pena perder algum tempo a discutir em
que medida os incêndios são uma espécie de “act of God”, estando por isso para
lá da responsabilização individual pelos seus efeitos, ou são uma consequência
de opções humanas, permitindo responsabilizações mais próximas ou mais
distantes, mais concretas ou mais difusas.
Comecemos pelo começo.
O fogo é um processo natural endógeno,
fundamental para a evolução dos sistemas naturais.
Classicamente, é arrumado junto dos outros
três elementos naturais primordiais: a terra, o ar e a água.
O que distingue o fogo destes três elementos
naturais é que o fogo é um processo químico e, por isso, não pode ser
armazenado como os outros três elementos (tal como não conseguimos armazenar
electricidade, que é movimento de electrões – uma vez parados, não existe
electricidade).
Para que se desenvolva o processo é preciso
que exista energia inicial para desencadear a ignição, e para o processo se
manter é preciso que exista um comburente – oxigénio, de maneira geral – e um
combustível.
Esta
característica do fogo, a sua não existência se não houver uma ignição inicial,
alimenta uma falácia muito frequente na discussão dos fogos florestais, a de
que só existem fogos florestais porque há ignições, portanto podemos evitar os
fogos florestais, evitando as ignições.
É uma falácia, não porque o raciocínio não
respeite as regras da lógica formal, mas porque não é possível evitar todas as
ignições, quer porque existem ignições naturais, em especial os raios, quer
porque o fogo é uma ferramenta que usamos muito mais frequentemente do que,
sequer, admitimos.
Poder-se-ia admitir que ainda assim valeria a
pena tentar, porque menos ignições é melhor que mais ignições.
É aqui, neste ponto, que começa a dificuldade
na classificação dos incêndios como “Act of God” ou como responsabilidade de
indivíduos, entre outras razões porque apenas 1% das ignições são responsáveis
por 90% da área ardida, tornando difícil o estabelecimento de relações de
causa/ efeito entre ignições e consequências de cada fogo.
É verdade que o fogo é um processo natural, é
verdade que o crescimento das plantas é um processo natural e é verdade que o
crescimento das plantas alimenta o fogo, pelo menos em muitas circunstâncias,
sendo ainda verdade que o fogo “decompõe” as plantas nos elementos químicos que
estão na base da vida, realimentando o crescimento das plantas.
Se formos muito, muito eficazes a evitar fogos
e, ao mesmo tempo, não gerirmos o crescimento das plantas, o que estamos a
fazer é potenciar os problemas causados pelo primeiro fogo que fugir do
controlo, favorecendo a acumulação de combustíveis, sabendo nós que haverá
sempre fogos que fogem do controlo.
Precisamos de saber mais para tentar
compreender este “eterno retorno” de modo a tirar partido dele, potenciando os
efeitos benéficos do fogo e limitando os seus efeitos negativos.
Todos nós compreendemos facilmente que para
fritar precisamos de um fogo alto e para estufar precisamos de um fogo lento,
isto é, para obter um determinado efeito queremos uma libertação de energia
rápida, para obter outro efeito, preferimos uma libertação lenta de energia.
Nos fogos florestais passa-se exactamente o
mesmo: fogos de elevada intensidade, que consomem combustíveis muito secos, sob
ventos fortes, irradiam muita energia e, consequentemente, têm um determinado
efeito no solo e na vegetação, fogos de baixa intensidade, em condições de
temperatura e humidade controladas, têm efeitos completamente diferentes no
solo e na vegetação porque irradiam muito menos energia.
De tal forma, que num fogo de Verão podem ser
consumidos combustíveis até 10 cm de diâmetro, mais ou menos, mas num fogo
controlado pretende-se que não haja consumo de materiais acima de 0,5 cm de
diâmetro. Sendo a irradiação de energia durante o fogo completamente diferente,
o calor nem sequer penetra no solo, no caso de um fogo controlado, não
destruindo a matéria orgânica da sua camada superficial.
Como o que
comanda o desenvolvimento de um fogo são os combustíveis finos – na frente de
fogo, o que transmite o fogo tem menos de 0,6 cm de espessura, são ervas,
raminhos, folhas, cascas, manta morta, etc. – isto significa que se num fogo no
Inverno consumirmos estes combustíveis, eles não estão disponíveis no Verão,
dificultando, ou mesmo impedindo, a progressão do fogo.
Também podemos usar pastoreio ou corte para
fazer este controlo dos combustíveis finos – aliás, muitas vezes se compara o
fogo a um herbívoro que vai escolhendo o que comer à medida que avança – o que
significa que sendo o fogo um fenómeno natural, e sendo o crescimento das
plantas outro fenómeno natural, nós temos ferramentas eficientes para lidar com
estes dois processos, moldando-os aos nossos interesses.
Não podemos evitar o fogo, é um “act of God”
no sentido alargado e não jurídico em que estou a usar a expressão, mas podemos
escolher quando arde, onde arde, de que forma arde, sendo nós os responsáveis
pelo padrão de fogo – medido pela frequência, intensidade e dimensão – que
temos hoje nas nossas paisagens.
Provavelmente, arde hoje menos que há setenta
ou oitenta anos, se usarmos como critério a área ardida anualmente.
Nessa altura a frequência de fogo era muito
maior – o fogo de renovação de pastagens tem uma frequência à volta dos três a
cinco anos, em muitos casos – mas a sua intensidade muito menor, por não haver
acumulação de combustível, e era em mosaico, porque havia muito menos
continuidade dos combustíveis.
Hoje temos uma frequência de fogo à volta dos
12 a 15 anos, mas como arde menos frequentemente e, ao mesmo tempo, deixámos de
roçar mato para as camas do gado de modo a ter estrume, deixámos de cozinhar a
lenha e passámos a comer abacate e salada de alface em vez de feijão com couves
e cabrito em dias de festa, há uma enorme quantidade de combustível acumulado,
com continuidade ao longo de áreas enormes.
Durante centenas de anos, a economia pagou a
gestão destes combustíveis, quer através da agricultura – as terras marginais
eram o alfobre de fertilidade das terras de pão – e do pastoreio. Durante um
curto período, mesmo a exploração florestal trazia rendimento suficiente para
pagar parte da gestão, mas hoje estas circunstâncias estão restritas às zonas
de mais elevada produtividade de eucalipto, nas explorações tecnicamente mais
evoluídas, ou onde as árvores convivem com outros usos do solo, como no
montado.
Fora estas duas circunstâncias, são
relativamente pontuais as áreas e actividades em que a economia paga a gestão
destes combustíveis e nós continuamos a achar que são os donos dos terrenos que
nos devem prestar o serviço de gestão do fogo, assumindo eles os custos de uma
gestão que não dá retorno.
80% da área ardida é explicada pela
meteorologia, e sempre que a meteorologia for extrema, como por estes dias,
teremos dificuldades.
A opção de termos uma paisagem mais ou menos
preparada para isso é nossa: ou criamos economias que paguem a gestão de combustíveis,
ou teremos de criar mercados públicos que permitam às pessoas gerir os
combustíveis das suas propriedades sem irem à falência.
O que não podemos esperar é que os
proprietários façam a gestão necessária dos combustíveis finos, perdendo
dinheiro.
Em todo este texto não escrevi uma linha sobre
a relação de tudo isto com as alterações climáticas, como me pediram, e isso
tem uma razão simples: quaisquer que sejam as condições futuras, teremos sempre
de encontrar maneiras de gerir os combustíveis finos para conseguirmos conviver
serenamente com o fogo.
Não, os incêndios não são um “act of God” e os
responsáveis pelo padrão que eles assumem são muitos e variados, porque somos
todos e cada um de nós (incluindo no momento em que escolhemos quem nos governa,
evidentemente, mas também quando escolhemos o que comer, pelo menos três vezes
por dia).
Fontes:
Portal dos Jesuítas em Portugal
https://pontosj.pt/autor/henrique-pereira-dos-santos/
https://pontosj.pt/especial/act-of-god/
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