O filme que foi rodado na Aldeia do Vaqueirinho, em outubro de 1993, por João Mário Grilo.
Links:
http://www.cinept.ubi.pt/pt/filme/2771/O+Fim+do+Mundo+-+A+Terra
https://cinemaportuguesmemoriale.pt/Filmes/id/383/t/o-fim-do-mundo
OS
4 ELEMENTOS - O FIM DO MUNDO
O Fim do Mundo - A Terra (1993)
The End Of The World
Produção Rodagem: Out 1992
62 min
Drama Telefilme
Realização: · João Mário Grilo
Argumento: · João Mário Grilo · Paulo Filipe
Com um golpe seco
do sacho, Augusto Henriques matou Conceição das Neves. Tudo por causa de uma
questão de águas, coisa pouca, daquelas rixas que fazem o dia a dia da terra.
Coisa pouca terá sido, mas o que ninguém lhe tira é que está agora ali um
cadáver, onde ainda há um instante havia uma mulher, mesmo que velha. Conceição
deixou de ser.
Nos seus 65 anos,
augusto nunca esteve preso, nem foi julgado, nunca teve querelas com polícias
ou tribunais. No mínimo, acha que nem é culpado, pois o diabo da Conceição é
que se baixou, tinha ele feito pontaria para um ombro. Mas o que é, é; ou não
estivesse a mulher morta lá em cima. O melhor que Augusto tem a fazer é mesmo
entregar-se à justiça dos homens.
No tribunal, o
juiz, clemente, aplica-lhe catorze anos de pena, «por causa da idade, e do bom
comportamento». Bem antes disso, porém, Augusto há-de regressar aos lugares que
foram seus. Para descobrir que, num golpe de sacho - seco e mal apontado -, se
pode até acabar o mundo.
[Sinopse Oficial]
["With a sharp
snap of a hoe, Augusto Henriques kills Conceição das Neves. All that over a
water issue, a matter of no importance, small village quarrels. But there is a
corpse where there was a woman two seconds ago. A lenient judge sentences him
to 14 years " due to his age and good behaviour ". Well before his
time is up, he returns to his village to discover that, with a sharp snap of a
hoe, can arise the end of the world. "]
Exteriores [#2]:
Lisboa | Serra da Lousã |
Estreias [#2]:
1993-05-15 | Festival de Cannes | Apresentação
1993-06-11 | King | Estreia
Imagens [#3]:
Dados Técnicos:
Cor | 35 mm | 1.66:1 |
Outras informações:
Co-produção luso-francesa
Pertence à série «Os Quatro Elementos:
Episódio Nº1 - Terra»
Festivais e Prémios:
# 1993 - Festival de Cannes, Un Certain Regard
OS 4 ELEMENTOS -
O FIM DO MUNDO
O cinema é uma
natureza, António Cabrita,
Expresso, 12 de
Junho de 1993
Filmar o fim de
um mundo, Elisabete França,
Diário de Notícias,
10 de Junho de 1993
A cidade e as
serras, José Vaz Pereira e Manuel Pereira,
O cinema é uma natureza
João Mário Grilo, 34 anos de idade, cineasta e professor de disciplinas ligadas ao cinema na Universidade Nova de Lisboa, é o realizador do último filme da série sobre os "Quatro Elementos", idealizada pelo produtor Paulo Branco. É unanimemente considerado o melhor filme da série e responde favoravelmente às expectativas geradas em O Processo do Rei. O Fim do Mundo baseia-se num "fait-divers" e tem em José Viana um protagonista de eleição.
Expresso - Uma das
coisas inesperadas no filme, embora se torne transparente quando se pensa
nisso, é o facto de, apesar de ter como tema o elemento Terra, a obra acabar
por convocar os quatro elementos. Claro que foi deliberado.
João Mário Grilo -
Foi inevitável. Prefiro este termo. A Terra é um elemento que convoca a complexidade
da vida, e como tal é muito difícil ter uma visão parcelada. (...) Aliás, um
dos pontos de partida essenciais do filme era ir ao encontro não de uma
dimensão cultural da Terra mas de uma dimensão natural meu olhar de cineasta se
enriquecia era justamente nessa busca de uma natureza das coisas. (...) Por
exemplo, não só é importante o que une como o que divide. A Água une a Terra,
mas ao mesmo tempo divide-a. Há portanto esse lado das matérias em fusão que
têm entre si relações conflituais, dialécticas. A unidade que a Terra convoca é
uma unidade activa. Aquele mundo continua a existir e a transformar os
elementos, cada um no seu oposto. Há uma cadeia constante...
(...) A Água no
filme não alimenta só a Terra, está na base do conflito que leva Augusto a
matar Conceição; o Ar não é só eufemisticamente o ar que se respira -
"mais puro lá em cima", como diz o sobrinho -, é o ar que falta a
Augusto na prisão e a situação económica que sufoca os sonhos da mulher do
sobrinho; o Fogo é o tempo que tudo consome e que pragmaticamente transforma o
rosto das coisas...
O próprio Augusto
informa-nos que na prisão trabalha nas caldeiras, fornece-as de lenha para se
poder viver naquele ambiente. Embora seja difícil porque a prisão é um meio
onde, se quiser, os elementos cessam. Não há Água, não há Ar, não há Terra. É
uma espécie de cubo higiénico... (...)
O preso está privado
de liberdade.
Não é isso. O lado
penitenciário define-se justamente por inscrever no homem uma natureza que não
é a dele, a inscrição da própria penitência, se se quiser. Esta coisa é
fundamental para a transformação do personagem. No fim, o Augusto deixa de ser
alguém que sofre a acção dos elementos para passar a ser um agente desses
elementos. No plano final do filme, quando a câmara fica fixa e assistimos ao
seu trajecto para algures, longe da câmara, o homem é o eixo fundamental dessa
ligação.
(...) Enquadra-se
nessa lógica a legenda com que fecha: "Este filme é baseado em factos
reais"...
Sim. Porque é o
fecho do filme sobre si. É como uma lápide. É uma inscrição tumular. Para que o
filme morra e o personagem continue a respirar essa legenda era essencial.
Aliás, o melhor lançamento do filme foi o que fez a SIC, que mostra um bocado
da fita e depois uma reportagem que fizeram com o Augusto, o verdadeiro, hoje,
na Lousã, no seu dia-a-dia.
Outro dos temas
deste filme - como, aliás, de obras suas anteriores - é o problema das escalas.
(...) Em Fim do Mundo, a questão também se situa à volta da desproporção do
pequeno, imprevidente e quase íntimo gesto de Augusto, que leva à morte de
Conceição, e do seu enormíssimo efeito na consciência de Augusto, que abdica
até de se defender no tribunal, quando afinal não havia testemunhas do crime.
Augusto torna-se um personagem profundamente moral e é isso que,
surpreendentemente, precipita o fim do seu mundo. (...) Porquê esta
"obsessão" pelas escalas?
Uma das coisas que
mais me espantou quando assisti pela primeira vez à projecção da Maria, o meu
primeiro filme, num ecrã de 16 mm, foi o choque ao aperceber-me da diferença de
escala entre o visor da câmara, onde eu tinha enquadrado, e o daquela imagem. É
um salto brutal: a imagem no ecrã é 150 mil vezes maior do que a mesma imagem
no visor. São os números reais; sempre que alguém pensa dois minutos sobre o problema
de como fazer um plano há uma ferida que se abre, dada a diferença entre a
escala que se pode adoptar e a própria visão. A arte combinatória das escalas é
que produz o movimento no cinema; imprime um movimento sobre o movimento que as
coisas têm. Como é que este artifício instaura uma coerência, num paradigma do
mundo? (...) Para Bazin as pessoas deviam receber os filmes com a intensidade
de um GP [Grande Plano], independentemente de estarmos, por exemplo, na
presença de um plano geral; o cinema devia ser esse lugar onde as pessoas viam
as coisas saltarem de escala, de plano. (...) Para mim, a escala coloca-me
também diante de um problema moral: não basta perscrutar o horizonte e achar
que ele pode ser cortado num ponto qualquer ou pensar que a soma das cesuras de
todos os planos articulará um olhar coerente sobre aquele território. Porque o
cinema estigmatiza as coisas, dá-lhes uma consistência que elas não tinham
antes. Quem for àquela região, depois deste filme, já não a olhará com a mesma
inocência, e mesmo o Augusto Henriques, que é uma pessoa, que existe, de
repente vê que a sua memória é reordenada porque o filme passou a fazer parte
da história dele, vai estigmatizá-la, realçar uns pormenores e neutralizar
outros. Aquele personagem do filme não é ele mas faz parte dele, é como se o
cinema agisse sobre a realidade. Essa é uma das funções do cinema: não deve
mostrar o mundo mas agir sobre ele, não se pode eximir a isso. Reinventá-lo
através das escalas, por exemplo...
Enquanto cineasta,
como se sente quando se insiste tanto numa presumível "morte do
cinema"?
Bom, quando os
Lúmiere mostraram a chegada do comboio à gare houve dois tipos de espectadores.
Os que acharam que era um comboio que chegara e se baixaram para não serem
colhidos e os que acharam que tinha chegado uma nova imagem. O cinema é para
estas pessoas. Mas esta ferida inicial nunca se sarou e isso hoje é um problema
premente. O que faz a distinção entre o cinema e tudo o resto é que o cinema é
uma realidade autónoma. As pessoas deviam ir ao cinema para ver o cinema que lá
está e não os reenvies para a sua realidade ou as histórias. É fundamental ver
os quadros pela pintura, pelas formas, tal como as estátuas pela escultura,
etc. Hoje, as pessoas vão aos museus espreitar as figuras que lá estão
representadas. São bisbilhoteiras, não amam a pintura. Nos relatos dos
primeiros fascínios pelo cinema apercebemo-nos de que as pessoas se sentiam
diante de uma percepção nova, radicalmente diferente das coisas. Hoje abusa-se
de uma norma, de uma gramática visual que tende a asfixiar o cinema, há um
desvio mas o cinema continua. E há outra coisa: o cinema coloca uma hipótese
comunitária nas pessoas que o vêem. Ao contrário da pintura, que é feita para
particulares. Neste sentido o cinema é uma arte contra a cultura. O Bazin tinha
razão quando associa o cinema à Natureza, à própria natureza das pessoas, à sua
percepção. O cinema tende a ser uma natureza. Foi uma das coisas que me ligaram
ao projecto do Fim do Mundo: pôr uma natureza diante de outra natureza.
António Cabrita,
Expresso, 12 de Junho de 1993
Filmar o fim de
um mundo
É hoje a estreia portuguesa de O Fim do Mundo, seleccionado para o último Festival de Cannes, onde passou na secção Un Certain Regard. Com duração de uma hora, o filme será antecedido na exibição, pelo documentário inaugural de Manoel de Oliveira, Douro, Faina Fluvial, em cópia nova, ainda não vista em Lisboa.
O Fim do Mundo
baseia-se numa história daquelas que os jornais relatam amiúde: um camponês
matou uma vizinha à sacholada, devido a uma disputa de águas, entregando-se
depois à polícia. No filme, depois da prisão, o homem (José Viana) vai
encontrar o seu canto irreconhecível, resultado de transformações que estão a
fazer da terra uma paisagem.
A mesma terra onde,
logo de início, a vítima (Adelaide João) fica caída e é descoberta pela irmã
(Zita Duarte), além de constituir, com a Penitenciária, um dos dois cenários
principais de O Fim do Mundo, é também o elemento que coube a João Mário Grilo
tratar, na série de "Os Quatro Elementos", produzida por Paulo Branco
para a RTP. Em sala, já passaram os outros filmes - de João Botelho, Joaquim
Pinto e João César Monteiro.
Realizador de Maria,
A Estrangeira e O Processo do Rei, João Mário Grilo vai na quarta
longa-metragem aos 34 anos (começou aos 18) e prepara a próxima (Os Olhos da
Ásia), mas também é professor. Formado em Sociologia, lecciona na Universidade
Nova desde 1984 - o que considera "um factor de sanidade mental",
pelo contacto com alunos e pela teorização, porque "um filme é sempre uma
maneira de pensar as coisas, antes de ser uma maneira de filmar e, se é
possível filmar sem pensar, ensinar não é possível sem pensar". Disto nos
fala, a propósito de O Fim do Mundo. Fala ainda de televisão, cinema e
audiovisual em Portugal.
(...) A realidade da
terra e o modo como nos é dada a ver, exprime uma ligação muito íntima a esse
elemento. Você é da Figueira da Foz, no litoral. Tem raízes fundas na terra?
Não. A terra sempre
me fez um certo medo, a terra fechada, sem comunicação para o mar. Nunca fui um
homem da montanha e portanto o filme foi uma maneira de chegar lá. Acho que os
filmes devem ser formas de descoberta. Procuro salientar a ideia de a terra ser
qualquer coisa que se vive (que suja as mãos; os citadinos usam mantas nos piqueniques,
para não se sujarem) e não qualquer coisa que se vê. Procurei fugir ao lado
contemplativo, uma harmonia entre o corpo e o que no corpo tem a ver com
aquilo, logo de início, com a inscrição do corpo no lugar, fazendo parte dele,
porque faz parte dessa história natural, como os bichos que não vemos mas estão
lá: a câmara foca a terra, passa sobre o corpo da mulher morta por terra e
volta a focar a terra. (...)
O elemento terra é
tão forte que faz supor intimidade com ele. Por exemplo, a terra sequiosa, a
ser ensopada pela água que corre de cima.
(...) O que diz acho
que se deve à terra, às coisas da natureza. Há uma empatia muito forte entre
natureza e cinema. Acho que uma coisa foi criada para se conjugar com a outra,
ou para captar a outra. Para mim, há duas formas de o cinema entrar no
universo: leitura potente, ou uma compreensão do tempo, das coisas e do
movimento delas - para mim é isto que faz o cinema. O tempo do cinema é um
tempo próprio, não é o tempo do relógio. Um plano pode-se medir na mesa de
montagem, quando se fala num plano de um segundo, fala-se em 24 fotogramas com
uma dimensão própria. O tempo da vida também não é o tempo do relógio, é
biológico e faz com que haja elementos naturais que se dão bem com a imagem. No
filme, foi na água que encontrei uma maneira de representar o tempo daquela
história, que não se pode medir, a não ser pelo tempo que a água leva a descer
e a mulher demora a subir. O tempo foi talvez uma das maiores dimensões que a
montanha me ensinou, até no processo do filme, porque havia menos umas três
horas de luz por dia, o sol nasce muito mais tarde e põe-se muito mais cedo.
Elisabete França,
Diário de Notícias, 10 de Junho de 1993
A cidade e as serras
Este filme surgiu integrado numa série de quatro filmes destinados à televisão. Foi uma encomenda.
O que me agradou no
projecto, em primeiro lugar, foi trabalhar num formato que ninguém conhecia
muito bem. Penso que, desde os anos 50, já ninguém está familiarizado com um
formato (filmes com cerca de uma hora) destes. (...)
Anteriormente, estes
filmes em Portugal, eram obras de primeira linha. Era assim que se filmava. Eu
nunca tinha trabalhado desta forma. Só o fiz no meu primeiro filme em 1978, em
super 8, feito com os amigos e uma equipa para aí com dez pessoas. Por outro
lado houve outra coisa que me agradou, que foi a natureza abstracta do
projecto. Fazer um filme sobre um conceito.
E a partir daí
desenvolver uma história...
Sim, mas sem nunca
perder a relação com a dimensão conceptual das coisas. Para mim é muito mais
importante o conceito. Acho que há duas linhas no filme: uma linha dramática,
narrativa se quiserem, e uma linha temática e conceptual. E essas duas linhas
são coincidentes.
O filme baseia-se em
factos reais, não é?
Exacto. Mas é
justamente esse lado que me interessa. De facto, ao fazer um filme sobre uma
coisa muito concreta, muito precisa, consigo uma dimensão abstracta que é o
facto de ser o fim dos mundos todos. Para mim todos os mundos acabam assim.
Podem não acabar assim do ponto de vista da História, mas sim do ponto de vista
da sua natureza. É um mundo que acaba, e o final daquele mundo é de alguma
maneira um final exemplar de todos os mundos. Como o princípio também.
Quando digo que é
baseado em factos reais não significa que seja uma representação desses factos.
Isto é, a personagem do filme não se chama Constantino, chama-se Augusto. Há de
facto uma diferença de identidade que para mim é fundamental. O Augusto é uma
personagem teórica. Onde há essa dupla dimensão, essa carga. O que me interessava
era provocar essa descontinuidade da personagem de raiz. Permiti-me acabar a
realidade de outra maneira. (...) Acho que é um final reconfortante para uma
certa moral que não a burguesa, que é bom o homem estar no meio da paisagem. É
um final onde há também um certo pudor. O ponto de vista dele e aquilo a que
nós não temos acesso, o que está do outro lado da montanha.
O plano final,
completamente aberto em termos de natureza, fecha de uma forma incrível aquele
indivíduo.
A ideia do plano
final é muito simples. Há dois universos que estão separados no princípio do
filme: o céu e a terra. Começa com um plano do céu e há esse fecho brutal sobre
a terra. Portanto há céu / céu e a terra / terra. No final temos uma personagem
que ascende de um plano para o outro. Recorta-se contra a terra no princípio do
plano e o próprio evoluir do plano é um evoluir natural. Quer dizer, podiam
ter-se passado imensas coisas durante o plano, como aliás se passaram. (...) É
um filme sobre a Terra porque se passa na junção de vários elementos.
Isso acaba por ter a
ver, por exemplo, com a diferença entre o Augusto e o irmão que foi para os
Estados Unidos. É uma personagem simples, ao contrário do Augusto que no final
daquele plano já está, como tu dizes, noutra dimensão.
Para mim o irmão é
uma figura, na tradição judaico-cristã. Uma figura que me interessa muito, que
corresponde às visitações. O irmão não é exactamente um anjo, alguém que vem do
ar sem nenhuma ligação à terra, mas tem essa dimensão de transportar para
dentro daquele filme um universo que foi rejeitado. Era importante que no
trajecto do Augusto houvesse não só a afirmação de um mundo que se vai
consolidando pouco a pouco mas também a rejeição de tudo aquilo que lhe é
exterior. A ideia da América, de todos esses universos exteriores que têm a ver
com os media, com a televisão.
Tudo o que não faz
parte do mundo do Augusto...
Havia a necessidade
dessa bipolaridade, marcada por uma grande proximidade que são as relações
familiares. De facto, um irmão é sempre a relação mais tangente. Não é se
calhar a relação mais forte, mas é a relação mais tangente. Da qual ninguém se
pode libertar ao longo da vida, não é? Não se escolhem os irmãos. Era
importante que sobre essa relação houvesse de facto o primeiro grande gesto de
negação. É um tipo que suporta todo o género de coisas que têm a ver com o seu
destino. A prisão, a morte da outra, os insultos, a polícia. O irmão não. É uma
personagem que lhe vem propor uma alternativa que eu acho quase surrealista.
Aliás, ele próprio diz que já tem 65 anos. Digamos que era um destino
extremamente engraçado imaginar um português que passe 14 anos na prisão em
Portugal e com 80 anos apanhe um avião que vai para a América. Isso é uma
recusa. Ele não chega ao céu de avião, chega ao céu por si próprio.
É uma recusa tão
grande como no fim de contas recusar, quando tem de sair da prisão, ir viver
com o sobrinho. Há sempre essa recusa de universos que no fim de contas já não
estão ligados à terra.
Sim, mas é o
problema da natureza. As coisas têm a sua natureza e todas as decisões que se
tomam em relação a isso são decisões que têm de se tomar em relação à natureza
das coisas. É um homem que honra os compromissos. O que lhe dá a dignidade é a
recusa em fazer compromissos seja com o que for. A não ser com a sua própria
história. Com a história das coisas. Há essa importância no segundo plano do
filme: uma mulher está morta no chão e aparece essa evidência. A natureza
põe-se em cena, de algum modo inscrevendo no interior da cena o próprio homem.
É o que marca a vida do Augusto, a relação com um certo princípio das coisas.
(...) Todos os acidentes não são mais do que interrupções, pequenos desvios que
ele ou toma ou não toma, mas nunca se afasta dessa perspectiva final.
(...) Tudo o que
aparece de urbano, desde a penitenciária até ao resto, é negativo. Isso é uma
transposição do pensamento do Augusto ou é uma opção do cineasta?
Não acho que é
negativo, porque eu não quis favorecer em particular o António em relação ao
resto. E preciso dizer o seguinte: filmei coisas que nunca tinha filmado na
vida e que toda a gente filma. O campo, a cidade, os automóveis, as prisões. O
cinema deve ser uma arte de descoberta e o filme uma maneira de chegar às
coisas. (...) A prisão por exemplo, para mim era um grande fantasma, porque as
prisões que estamos habituados a ver são prisões americanas, muito
cinematográficas. É aquele sítio onde toda a gente passa, mas nunca ninguém
entra. E a prisão para mim, como edifício, tem uma lógica espacial bem
definida. Uma lógica corporal e física antes de mais nada. Portanto, havia
muito essa vontade de ver como é que aquilo era por dentro, e eu não acho que a
prisão seja no filme um universo negativo. Se calhar tem o seu lado fotogénico,
fotogenia aqui no sentido da alma. Não é as coisas serem belas, mas é terem uma
alma que de algum modo se dá à imagem. Portanto, o problema da negatividade ou positividade
dos universos depende um bocado das opções das pessoas.
Penso que o
apartamento da Maria do Carmo e do Carlos, se calhar não é o mais interessante
dos décors, mas por que é que há-de ser mais interessante do que a casa do
Augusto na serra? A Maria do Carmo... havia esse lado automático da percepção,
vê-la por exemplo sentada num sofá com um comboio cm fundo. Da primeira vez que
se vê a Maria do Carmo é num plano quase boschiano. Por um lado tem uma
dimensão altamente construída e estruturada, porque escolhi aquele apartamento
por causa do comboio. Tem a ver com a luz também, mas ao mesmo tempo há um
efeito de marca do real. o lado não boschiano do plano. (...)
Se nós imaginássemos
que o Augusto tivesse de esperar o julgamento sob fiança ou em regime de
semiliberdade, era capaz de ser para ele pior do que na prisão...
Claro, claro. Até
porque a penitenciária é um sítio que é o contrário de, por exemplo, um
mosteiro. Temos a ideia que as pessoas estão fechadas em celas. Não! Aquilo é
uma coisa inacreditável do ponto de vista das relações sociais. E um universo
altamente complexo, onde o indivíduo está sozinho no meio da multidão. Há para
aí 200 pessoas no meio de uma galeria de uma prisão e cada uma delas está
sozinha, traz o seu mundo, está carregada com coisas. Há um carga em cada
pessoa e nada escoa, fica ali tudo dentro.
(...) Há mais traços
prisionais no apartamento do que propriamente na cela.
São celulares desse
ponto de vista. O Augusto não pratica a penitenciária como uma prisão. Vemos o
Augusto cá fora a falar com o irmão. A presença do espaço continua a ser dura.
Nada daquilo é desvirtuado, nada daquilo é violentado, mas há uma prática do
sujeito lá dentro que faz com que a Maria do Carmo e o Carlos acabem por...
esse eco da prisão acabe por ser mais facilmente encontrado... até porque eles
próprios têm uma coisa que ele não tem. Manipulam as paisagens lá dentro.
Ela tenta manipular
a noção de beleza.
Exacto, aliás ela
passa a vida a falar nisso. Quer manipular mundos no interior de coisas, quando
não tem nada a ver com eles. A paisagem tropical dentro do apartamento... Já só
se pode trabalhar assim. A televisão acesa com o plano do "Homem
Tranquilo", o aquário com os peixes... Agora a serra do Augusto é um
universo completamente coerente com ele. Há um lado de passagem que faz com que
esse lado prisional acabe por não ser praticado pelo sujeito, embora seja
instituído pelo dispositivo. Hoje em dia as pessoas vivem assim, basta ir ali
às Telheiras... qualquer bairro. Nós estamos condenados a isso, a viver com
grades nas janelas, produzir uma prisão, porque não há outra forma. Na
penitenciária há uma remissão, nestes sítios não há remissão possível.
Associas a televisão
a isso?
Completamente,
completamente. Por oposição ao cinema, espaço? Justamente. Não estou a falar
nesta ou naquela televisão, estou a falar na televisão como dispositivo, é uma
coisa que vem...
...prender as
pessoas?
É isso. E agora
quando se fala na questão da alta definição, acho engraçadíssimo porque tem
tudo a ver com isso. Tentar amarrar as pessoas às casas, para já porque é
difícil as pessoas saírem. Aliás o Godard dizia isso: hoje em dia não é difícil
as pessoas irem ao cinema, o que é difícil é as pessoas saírem de casa. E a
televisão é, bom... Mas para que é que isso é feito? É bastante demoníaco
imaginar para que é que essas coisas são feitas, não é? De que forma é que uma
programação está organizada, como é que se organiza, o que é que pode passar
por entre as telenovelas, o que é que pode passar por entre os telejornais. E
esse lado doméstico, do meio é extremamente problemático. E como os gatos,
acabam por domesticar mais do que são domesticados.
No plano de trabalho
das filmagens como é que foi filmar na serra?
Foi complicado por
três razões logísticas muito simples. Em primeiro lugar não há luz, o sol nasce
muito mais tarde porque há as colinas. Enquanto normalmente tens 8 horas de
luz, ali tinha de se trabalhar com 4 ou 5 horas. Além disso havia a
instabilidade do tempo. Podia-se estar a filmar às dez da manhã com sol. e às
dez e meia estar no meio da tempestade, o que aliás ocorreu várias vezes. E, em
terceiro lugar, pela própria dificuldade, quer dizer, a equipa que trabalhou
comigo fez esforços sobre-humanos para conseguir transportar os equipamentos
ali. Há planos no filme que foram filmados com pessoas quase em risco de vida,
em escarpas, para conseguir planos às vezes o mais naturais possível. De facto
é um meio muito hostil. Muito hostil à vista. Não é feito para veres, é feito
para viveres. Portanto, houve esse lado de ruptura, de violação de um princípio
que as coisas têm.
Nos teus filmes,
quer a "Maria", "O Estrangeiro", quer no "O Processo
do Rei", há sempre a noção de que as pessoas perdem alguma coisa e que
isso é irremediável.
Não estou a fazer-me
digamos um cúmplice disso, mas quando as pessoas dizem coisas muito justas,
acho, que não há mal nenhum em as citar. O Manoel de Oliveira disse há pouco
tempo uma coisa lindíssima quando falou de uma certa presença, não no cinema
português, mas num certo cinema que por cá se faz. Falou a propósito disso duma
"estética da agonia". E acho que isso é uma expressão muito bem
esgalhada, porque acaba por ser uma outra forma de tratar o objecto da
perdição. O objecto é uma coisa que se perde, a agonia é uma coisa que se
sofre. Eu diria mais que
estou nesse... a mim
não me interessa tanto o problema da perca, mas sim o problema do processo, a
forma como a perca gera um processo e esse processo pode não ser um processo de
perda. A agonia não é forçosamente uma perda, quer dizer, pode ser um ganho
noutro ponto. (...)
Como é a tua
vivência por um lado ao trabalhares com grandes actores, como o Fernando Rey,
José Viana, e por outro lado filmares com equipas internacionais?
Com a idade estou a
tomar-me um bocado mais impaciente. Também reconheço isso. Este filme foi
particularmente duro porque tudo quanto se filmou era muito hostil, desde a
montanha à prisão. Filmar a penitenciária é uma coisa... foi de facto admirável
as facilidades que deram, o poder filmar lá dentro, mas acabei por ter imensos
constrangimentos. Uma vez atravessei a porta para sair e houve um polícia que
se virou para mim e disse "houve lá, mas onde é que tu pensas que
vais?". E tenho as melhores recordações dessa semana em que nós filmámos a
penitenciária, não só por causa do espaço, por causa das pessoas que lá estão,
que vivem lá. Havia matéria se calhar para fazer um filme sobre isso. Muito
interessante. E como era tudo muito hostil havia necessidade de uma grande
solidariedade entre as pessoas... que não aconteceu completamente. Isto é:
houve um desfasamento entre a necessidade de filmar rapidamente e o tempo que
as coisas levavam a preparar. Alguma insuficiência de meios também, porque se
tratava de uma produção B... e a gente queria que fosse assim, mas acabou por
criar problemas. Acho que todos os filmes têm os seus problemas e isso também
lhes dá alguma personalidade. Um grande filme - e penso que por este lado ainda
não consegui dar a volta - tem que reflectir lá dentro o seu processo de
produção. Olhas para um Ford e vês como ele foi produzido. Tens de saber que ao
lado da realidade que queres filmar há a outra realidade do trabalho que lá
está inscrito, a maneira como esse trabalho se reflecte, se produz.
(...) Neste filme havia
uma particularidade muito própria que era o facto de a equipa de imagem e a
equipa de som serem compostas por franceses. Acho que nem para eles era fácil
nem para nós. Para eles, porque estavam num mundo que não conheciam, mas também
a fazer coisas que nunca não tinham feito. Filmar montanhas, prisões, era para
eles tão novo como era para mim, com todos os problemas que isso levantava. As
vezes houve é desfazamentos de tempo, em que ele faltava para fazer algumas
coisas. O que é preciso fazer é tentar articular cada filme com o seu projecto
de produção. Seja com actores nacionais ou internacionais, com equipas de fora
ou de dentro. Tem de haver essa consciência de que de facto as coisas são
produzidas. A pior coisa que pode acontecer é a pessoa começar a filmar e não
ter consciência da máquina que tem consigo. E isso é uma coisa que se vai
aprendendo. O que permite ao Oliveira aos 85 anos filmar durante quatro meses é
essa perfeita consciência da máquina que tem. E quase a voz da experiência,
quase automático. Como comer com a faca e o garfo. Ninguém pensa como é que
há-de comer com a faca e o garfo. E acho que tem de se filmar dessa maneira.
Com essa identificação quase absoluta dos meios que se têm.
José Vaz Pereira e Manuel Pereira,
Se7e, 09 de Junho de 1993
Fontes/Links:
https://osomeafuria.blogs.sapo.pt/
ΦΦΦ
Sem comentários:
Enviar um comentário
contribua e comente!
obrigado!