⚪ - Associados - O tempo e as paisagens

Divulgamos aqui, a pedido de um dos nossos Associados, um texto, de Henrique Pereira dos Santos, intitulado O tempo e as paisagens 



O título deste texto – O tempo e as paisagens – é quase igual ao título de um livro que escrevi há alguns anos. Nesse livro acabei por ir falando de pessoas com quem aprendi muito sobre gestão de paisagens (não estão todas no livro, o livro teria de ser muito maior para lá caberem todas aquelas com quem aprendi muito sobre o assunto), incluindo, naturalmente, Ilídio de Araújo, que cito agora para enquadrar o que quero dizer.


“Porque a gestão qualificada das paisagens tem de se alicerçar forçosa e basilarmente no respeito pelas exigências do funcionamento economicamente viável nos sistemas bióticos de fixação da energia solar (nas explorações agrícolas, florestais e nos sistemas hídricos)”.


É aqui que entra o tempo neste texto, na necessidade de assegurar que o funcionamento economicamente viável nos sistemas bióticos de fixação de energia solar se prolonga suficientemente para moldar uma paisagem.


Se for economicamente inviável, podemos escolher entre ser Sol de pouca dura – os campos de girassóis que uma política agrícola desmiolada espalhou pelo país durante uns anos, praticamente sem deixar rasto visível hoje – ou ser limitada no espaço, como os jardins do palácio de Fronteira, canalizando para essa pequena parcela os recursos que retirámos de origens fora desse espaço.


Em rigor, podemos adoptar uma terceira opção, abandonar a gestão, deixando os sistemas bióticos de fixação de energia solar evoluir de acordo com as suas dinâmicas internas, aquilo a que hoje se chama rewilding, o nome sexy do abandono.


Note-se que esta última opção é perfeitamente legítima e, em muitas circunstâncias, é uma opção de gestão muito sensata, seja apoiada ou não por intervenções cirúrgicas que possam ter interesse para que essa evolução esteja mais de acordo com o que pretendemos, como a eliminação de espécies invasoras, por exemplo.


A relação entre o tempo e as paisagens perdura, para lá dos novos nomes e conceitos com que designamos realidades antigas.


A citação de Ilídio de Araújo que usei acima é de 2010, numa altura em que ele próprio dizia que se recusava a falar sobre paisagens. Se fosse hoje tenderíamos a substituir “fixação de energia solar” por captação de carbono, mas isso não passa de mais uma partida do tempo: passamos a vida a inventar nomes novos para realidades antigas.


Em si, esta permanente busca de novidade – chamar nature based solutions à gestão de sistemas naturais que os agricultores e pastores sempre fizeram – não é boa nem má, mas tem o problema de confundir o essencial com o acessório, isto é, de não distinguir o que na paisagem é permanência (e a que escala) e o que é novidade.


Quando se olha de mais longe para a evolução das paisagens, em Portugal, escolhendo um tempo longo para a análise, o tal abandono a que insistimos em chamar rewilding, não é mais do que o resultado conjuntural de uma alteração, essa sim, profunda: a descoberta e generalização do “processo de Haber-Bosch”, isto é, da invenção da capacidade de captar o azoto atmosférico, cortando o vínculo entre produção animal e agricultura a que a gestão da fertilidade obrigava.


A partir do momento em que podemos captar azoto, isto é, fertilidade, a partir da atmosfera, à custa de um consumo energético gigantesco, é certo, muitas das nature based solutions que agricultores e pastores tinham desenvolvido ficam obsoletas, até ao momento em que lhes encontremos novas utilidades.


Intercalar a produção de leguminosas entre produções para enriquecer o solo com azoto, pastorear as terras pobres na envolvente das áreas agrícolas, roçar o mato e carregá-lo para a cama do gado, são algumas das based nature solutions que deixaram de ter a importância que tinham antes de ser possível criar fertilidade em fábricas.


Terras agrícolas que não tinham préstimo por falta de nutrientes, ou a que se davam os destinos possíveis para ir alimentando, escassamente e a custo, uma população miserável, passaram a poder produzir mais e com mais diversidade.


Na maior parte das terras mais pobres, no entanto, o destino passou a ser o abandono ou a produção florestal comercial, independentemente das políticas públicas que, na verdade, pretendiam, sem o saber, musealizar paisagens que serviam comunidades e culturas entretanto mortas.


Políticas de conservação da natureza que reagiam à crescente intensificação das terras mais produtivas, a que era possível trazer ainda mais fertilidade provinda das fábricas, falharam em compreender que, em muitos casos, na maior parte do território, era ao abandono ou extensificação da gestão que era preciso responder.


O tempo se encarregou de ir tornando visíveis os efeitos da alteração na gestão da paisagem desencadeada pela síntese da amónia, quer na intensificação das terras mais férteis e uso imoderado das possibilidades técnicas abertas pelo baixo custo da fertilidade, quer no abandono das terras marginais que nos devolvem recuperação de sistemas naturais, alterações de padrão de fogo e expansão de espécies invasoras a escalas que nunca imaginámos.


Talvez seja o momento de integrarmos melhor o tempo na gestão das paisagens, confiando menos no poder que temos e mais na inteligência de que somos capazes, redesenhando processos de gestão da paisagem que tenham mais probabilidades de nos servir melhor, no longo prazo.


O que temos hoje não parece tão ameaçador como dizem uns, nem tão útil como dizem outros.



o texto foi divulgado em junho no website


Data: 26-06-2023


Fontes/Links:

https://florestas.pt/comentarios/o-tempo-e-as-paisagens/

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